Transdução
Anabela Mendes (FLUL) e Maria Filomena Molder (UNL)
24 Maio 2023 | FLUL | 18:00
Anabela Mendes
"Tesoura invisível – objecto imprescindível para uso na escrita de Elfriede Jelinek"
Nunca será assim tão breve o trajecto que cumprimos em leitura na companhia da autora austríaca Elfriede Jelinek. Acompanhamo-la, escutando e lendo essa espécie de manifesto que a ensombreia mas não a oculta. Ela expõe-se e nós tornamo-nos jogo entre o seu e o nosso ser, porque nos deixamos acolher/desacolher pela sua fala e só por ela e só por ela. Enchemo-nos de singularidade por aproximação, uma vez que despertamos no meio de obra literária conduzida ad infinitum. Textualidades, partituras, libretti, rodeados dramas de explosiva vitalidade convocam-nos para próximo de refugiados sobre os quais pouco sabemos de facto. Die Schutzbefohlenen [Os Protegidos] (2012-2015) são escrita/fala sobre nós próprios e sobre a nossa incapacidade de sermos seres empáticos com urgência e eficiência. Quem protege quem?
A denúncia do que é estranho e inconveniente revela-se na morte próxima sob espessa neve. Querer refugiar-se é um texto em fuga pela paisagem da história universal. Refugiados, migrantes, escravos, perdidos de si, sofredores sem pátria, mortos antes de tempo fazem juntos uma simbólica viagem: a nenhures. E é em nome deste não-lugar que os anónimos destinos são sobreposição e mistura. Em nome de todos eles, dos que foram e partiram, acresce delimitar os traços gerais que os constituem. Cada refugiado só interessa enquanto tal e pouco. Um relato particular está próximo de todos os outros.
Assim se respeita o primado do excesso que envolve a escrita jelinekiana. Cortar nunca será a eito, pois o texto dramático se desenha em manchas gráficas de arquipélago para arquipélago, espalhadas pelas águas oceânicas e nelas projectado. O gestus não é corte textual, é antes exercício coreográfico entre partes, entre ilhas e territórios em cruzamento. Sem uma tesoura invisível é difícil aproximarmo-nos da mestria da autora.
Maria Filomena Molder
"Entreabrir, olhar e não olhar, ver e não ver. A propósito de Zara. Edição Poliglota
(edições do Saguão, Lisboa, 2022)"
Zara era o nome de uma das irmãs de Joaquim de Araújo, morta, uma menina ainda, em 16 de Novembro de 1879. Por amor da irmã e por amor por Antero a quem pediu uns versos de evocação da irmã, fez traduzir as duas quadras em versos de onze sílabas por diferentes tradutores em 77 línguas e idiomas-dialectos.
Em 1894 é publicada pela Imprensa Nacional Zara. Edição Polyglotta, com bibliografia e prefácio de Joaquim de Araújo, acrescidos de uma tábua dos idiomas e uma tábua dos tradutores, numa tiragem de 180 exemplares.
Um ano depois, é publicada em Génova uma plaquete (em lembrança do casamento de um amigo de Joaquim de Araújo) sob a responsabilidade do linguista, poliglota e tradutor italiano, Emilio Teza, que recolhe 15 novas versões, antecedidas por um conjunto de extraordinárias “Noterelle”, nas quais se fala da tendência para a escuridão do poliglota e se incluem duas tentativas de tradução.
Do que é que eu gosto nisto?
1) do pedido de celebração da menina morta a um poeta já venerado, amigo e lido, pelo encomendador;
2) da aceitação do pedido: Antero enviou as duas quadras dois meses depois da morte da irmã de Joaquim de Araújo;
3) da ideia de fazer traduzir esse poema;
4) das inúmeras traduções e delas fazer parte um número considerável de idiomas-dialectos falados por poucos, hoje em dia menos que poucos;
5) de alguns dos tradutores traduzirem várias vezes, sobretudo aqueles que nós sabemos conhecerem a obra poética de Antero, em particular, italianos, como é o caso de Tommaso Cannizzaro;
6) do título da publicação que me parece caber numa conversa a propósito de transducção;
7) do ensaio de Emilio Teza, que será o meu guia para esclarecer o título escolhido (as palavras são dele).